terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O SUICÍDIO DE ORDÁLIA

Tua insistência no erro, Ordália, levou a indolência a prolongar teu martírio por meses, até que fugiste para o mar. Estás sentada olhando as ondas, visitada por escuros sonhos. Ontem, caminhando nas ruas tu não enxergavas outra coisa senão os olhos que te acusavam.

Ordália! Ordália! Teu nome é um abismo filosófico. Me inspira sentimentos cuja natureza assombra.

Como iniciar tua história trágica? Do fim. Do meio. Do começo. In média res?
Ordália traiu o marido. O marido a deixou por outras. Antes, matou os filhos e ficou com a fortuna dela. Que tesouros ela tinha? Que bens deixou no mundo?

Ordália! Ordália! Tenho receios incomunicáveis do teu fim. Tua alma em conflito aceitou a morte dos filhos sem uma lágrima sequer! Teu coração é estrada coberta de flagelos. Por ela já passaram sorrisos inocentes; mãos que se tocavam; braços que se estendiam e olhos que vislumbravam o fim do caminho.

Ordália!Ordália! Por que razões te corrompeste? Quantos orgasmos vale tua existência? Quantas margens formam o teu rio?
Estava a olhar Ordália o vai e vem das ondas, e imaginava-se um dejeto qualquer, sendo cuspido do mar à praia, e queria mesmo se materializar em um tanto de excremento para ser objeto de escárnio no julgamento implacável do olhar e olfato terceiros. Queria sumir, fugir, evaporar-se feito água sob o sol, e, contrariando o ciclo natural das coisas, não mais voltar ao estado inicial.

Queria morrer sob um estado de nada, de ausência, inexistente registro. Queria ser flor
esmagada por gigantescos pés. Olhava-se a si própria com olhos veementes, judiciosos, implacáveis. Pensava-se, das coisas criadas, a única que não merecia estar viva. Uma árvore, dizia a si mesma, alimenta, dá sombra e descanso a outros. Um rio dá seus peixes e suas águas. O sol, seu calor e luz que alimentam e sustentam a vida. Os animais seguem seu percurso sem importunar ninguém a menos que sejam importunados em sua ausência de razão.

Ordália! Ordália! Teus filhos eram felizes e teu marido te amava em desespero. Como te deixaste corromper tão desgraçadamente? Que bens entesouraste nessa negra alma que agora queres separar do corpo de teu prazer? Prazer. Eis a palavra-chave desse enigma. Teu marido viajava em busca do pão teu e dos filhos dele. Tu, antes de cuidar zelosamente pelo amor que ele te dedicava e pelo qual se lançava em brejos sem fim em busca de compradores, de maus pagadores e outros estranhos negócios, levavas teus pensamentos para o quarto separado de tua sala por fina parede. Ali, iludindo a esposa com juras de falso amor, teu vizinho sabia que tua indelével mocidade parecia mais viva do que aos teus dezoitos anos, quando vocês se beijaram pela primeira vez. Passados dez anos, oitos dos quais casada com esse agora infeliz marido, tal brasa pareceu reviver sua chama destruidora de todas as prudências e te deixaste consumir pela imagem que fazias do casal ao lado rompendo o silêncio da noite com gemidos de inexprimível prazer, falso de um lado, profundo de outro. E quiseste experimentá-lo, mesmo que isso custasse preço que jamais poderias pagar, mesmo que vivesses sete vidas de mil anos de solidão como purgação pelos pecados cometidos.

E assim Ordália permaneceu por instantes que se transformaram em minutos, que viraram horas, para deles nascer uma eternidade. Antes, porém, ela lembrou do último instante em que, mentalmente, experimentou a mais consistente impressão de felicidade, que geraria uma dor mais forte que a da morte. Foi quando os filhos, em tudo diferentes do pai, no parecer e no ser, fitaram os olhos da mãe, arregalados sob o pavor causado pela visão de uma afiadíssima lâmina a se aproximar de seus únicos amores. Aqueles olhos pediam socorro. Ela não pôde fazer nada. E antes de presenciar o apagar definitivo do brilho inocente no olhar dos filhos, Ordália ouviu a acusação fatal e a sentença irrevogável:

- Eu sabia, Ordália, que esses filhos não eram meus. Não poderiam ser porque, pelas minhas contas (e tu sabes que jamais erro em meus cálculos), as duas vezes em que engravidaste eu estava viajando. Sorte do homem que morava ao lado de nossa casa ter fugido. Tu porém pagarás com a vida essa traição, e esses teus filhos não merecem sofrer as desgraças da orfandade. Foi com o estrugir dessas palavras assassinas que Ordália despertou. Fugira do marido, mas não poderia fugir do mar. E ela despejou-se ali naquelas profundezas. Ela se fora. Dos vestígios de Ordália o mais duradouro não conseguiu resistir ao ir e vir das ondas. As marcas dos pés que afundaram na areia pelos instantes em que preparava Ordália a sua alma, apagaram-se para sempre. E para sempre Ordália será lembrada como a mulher em cujo coração havia sentimentos inconfessáveis, os quais perderam-se nas águas bravias e profundas do mar, como profundos e agitados foram os curtos anos de Ordália

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